22 de janeiro de 2021
Curitiba, novembro de 2019. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva recupera a sua liberdade após 580 dias na prisão. Foto: Filipe Araújo/Fotos Públicas

O lawfare é um fenômeno que, apesar de ser mundial, tem se desenvolvido sistematicamente e com uma frequência indesejável na América Latina.

Trata-se do uso do Poder Judiciário para interferir na política, especialmente no que diz respeito à aplicação da lei penal. O lawfare é uma guerra jurídica para fins ilegítimos, como meus advogados explicaram em 2016. As elites da nossa região e os defensores dos interesses do capital financeiro internacional, que há décadas combatem as políticas sociais projetadas para erradicar a pobreza e diminuir as profundas desigualdades sociais, elevam a corrupção à categoria de “mal cósmico”, apontando-a como a origem e a causa de todos os males. Claro que ninguém aprova a existência de governantes corruptos. Mas a luta contra a corrupção nada mais é que um pretexto utilizado por aqueles setores para atacar governos legitimamente eleitos pelo voto popular.

O tribunal passou a ser o âmbito no qual os derrotados nas urnas buscam impor seus interesses sobre a soberania popular. Por essa via, alguns setores do Poder Judiciário e dos distintos órgãos do sistema judiciário, com o apoio oportunista dos meios hegemônicos, voltaram-se a contra governos populares preocupados com a defesa dos interesses nacionais. Seu objetivo é criminalizar e destruir a política, tentando difundir na sociedade a ideia de que todos os políticos são corruptos. Como nos tempos atuais já não se mostra adequada a destruição física do adversário, o que se anseia é a sua morte legal e política.

Sob a desculpa de combater a corrupção, eles violam o princípio do devido processo legal e as garantias constitucionais dos réus. Os casos que ocorreram em distintos países da nossa região mostram sempre o mesmo método de lawfare: uma parte da imprensa, politicamente envolvida, cria um fato e o divulga amplamente (uma mentira que se conta mil vezes acaba se tornando “verdade”); apoiando-se com exclusividade nessa notícia forjada, a Polícia Federal abre uma investigação; o Ministério Público sai à busca de elementos que possam sustentar formalmente a acusação; nos casos em que não se tem acesso a nenhum indício de prova, ainda assim a denúncia é muitas vezes encaminhada, como aconteceu no Brasil, sob a afirmação de que “não conto com provas, mas tenho convicção”.

Depois só é preciso “identificar alguns juízes dispostos a colaborar”, seja porque se abre diante deles a desejada oportunidade do estrelato ou porque visualizam uma vantagem pessoal concreta. A vida privada e a intimidade dos acusados é exposta diariamente com base nesses chamados vazamentos (vazamentos de informação), termo sob o qual se camufla a operação de selecionar de maneira perspicaz um ou mais fatos e transmiti-los aos “colegas” dos meios de comunicação, sobretudo da televisão.

Diante da impossibilidade de demonstrar o que não aconteceu, recorre-se a escutas telefônicas ilegais, intimações compulsórias e prisões preventivas, tanto dos acusados quanto de seus familiares. Tais são os mecanismos para alcançar a “delação premiada” do “arrependido” (assim se denomina nos países hispânicos aqueles que “são capazes de inventar qualquer situação para obter lucro”), para quem o “prêmio” é a própria liberdade e, pelo menos no Brasil, a chance de conservar boa parte dos resultados do crime que se confessou.

Arrancada, assim, a confissão “delatora”, mesmo sem a menor prova, condena-se o delatado sobre juízo de valor e, se não se consegue demonstrar a acusação que se lhe imputa, apela-se à peculiar categoria de “fato indeterminado”. O circo do lawfare se completa com a sentença condenatória que será confirmada por um tribunal igualmente parcial e comprometido com os interesses políticos e econômicos das classes dominantes.

É assim que se asseguram as condições legais para que o inimigo seja colocado na prisão e fique impossibilitado de intervir na vida política. Os grandes meios de comunicação, com a televisão no fronte, encarregam-se de difundir incessantemente a decisão judicial, dispostos a dar legitimidade a todo um processo absolutamente espúrio.

Com o inimigo afastado da arena política, fica aberto o caminho para a eleição de homens e mulheres de Estado submetidos aos interesses do mercado, que se abstêm de proteger a população, especialmente os mais pobres. Viola-se a soberania nacional com a venda de grandes empresas públicas, arrematadas sempre a valores muito inferiores aos que realmente possuem, em operações que revelam um forte desprezo pelo meio ambiente e por tantos outros direitos básicos da população.

No Brasil, tentaram me impor a morte política e legal. Fui vítima dessa maquinação de lawfare aqui analisada: a partir de uma notícia falsa publicada em um jornal, fui investigado, processado e condenado pela chamada Operação Lava Jato, que condensa o pior do sistema judiciário brasileiro.

Hoje ninguém tem dúvidas de que setores da Polícia Federal e do Ministério Público Federal estavam às ordens de um juiz notoriamente parcial e ávido de autopromoção, e que formaram uma organização guiada pelo objetivo de anular meus direitos políticos para, desta forma, impedir que pudesse voltar a ser candidato à presidência da República e garantir ao Partido dos Trabalhadores seu quinto mandato consecutivo. Com uma rapidez nunca vista na condução de outros processos, o Tribunal Regional Federal confirmou a sentença, cumprindo a promessa pública feita de forma expressa por seu presidente de que o caso seria julgado antes das eleições.

Não levaram em conta a minha resistência. Não levaram em conta o apoio incondicional que me proporcionaram os movimentos sociais, os trabalhadores e todas aquelas pessoas que, desde os diferentes pontos do país, montaram, em frente ao prédio da Polícia Federal onde estive preso, a comovente Vigília Lula Livre. Não levaram em conta a notável reação da comunidade política e jurídica internacional. E em vez de deixar o Brasil, como chegaram a me sugerir, decidi ir para a prisão e, a partir daí, enfrentar aqueles que covardemente me acusavam sem provas. Não foi em vão, já que pelo menos uma das maiores conquistas das sociedades civilizadas, e uma que nossa Constituição Federal garante, já foi restabelecida pelo Supremo Tribunal Federal: a presunção de inocência. Uma medida que pôs termo à minha injusta prisão, determinada antes de o Tribunal Superior se pronunciar sobre o recurso apresentado em minha defesa.

Hoje estou solto, mas não estou livre. Os meus direitos políticos continuam a ser cerceados, mesmo antes de ser julgado o recurso com o qual entrei na Suprema Corte.

No meu caso, como em muitos outros, desvirtuou-se o “verdadeiro direito penal” para dar origem ao “direito penal vergonhoso”, o qual serve para a transformação do poder judiciário em instrumento de perseguição política de todos aqueles que, na nossa querida América Latina, elevam a sua voz e os seus braços em defesa daqueles que foram abandonados à sua própria sorte, e enfrentam os poderosos representantes do capital financeiro internacional e dos governantes servis ao Deus mercado.

Luiz Inácio Lula da Silva foi presidente da República Federativa do Brasil, entre 1º de janeiro de 2003 e 31 de dezembro de 2010. O texto é baseado no prefácio do livro Lawfare. Manual de passos básicos para demolir o direito penal escrito, por E. Raúl Zaffaroni, Cristina Caamaño e Valeria Vegh Weis (Capital Intelectual). Tradução de Cristian de Nápoles.

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